domingo, 2 de setembro de 2012

Apresentação


O presente documentário é a transcrição “ipsis literis” dos textos que integram o chamado relatório elaborado pela 1ª Comissão de Inquérito, instalada para averiguar o que se convencionou anunciar como Fatos Extraordinários do Joaseiro, acontecidos em torno de 1889, ou até mesmo, poucos anos antes.

O presente documentário é a transcrição “ipsis literis” dos textos que integram o chamado relatório elaborado pela 1ª Comissão de Inquérito, instalada para averiguar o que se convencionou anunciar como Fatos Extraordinários do Joaseiro, acontecidos em torno de 1889, ou até mesmo, poucos anos antes.

Os documentos aquí transcritos foram reproduzidos do original que se encontra arquivado na Cúria Diocesana, em Crato, com a devida permissão da autoridade eclesiástica. Cópia xerográfica está disponível, para consulta, no Centro de Psicologia da Religião, da Paróquia de N. S. das Dores, em Juazeiro do Norte. Relevamos e agradecemos o trabalho paciente de Maria do Carmo Pagan Forti, a quem devemos a tarefa de transcrição fidedigna de todos os textos.

Anteriormente a este fato, somente nos arquivos do Vaticano e da Columbia University, New York – com o Prof. Ralph della Cava, seria possível a sua consulta.

O Ipesc, ao tomar a iniciativa de reproduzir, apenas 10 cópias numeradas, este documento, espera ter contribuído para a democratização do acesso a estas fontes, cumprindo, assim, a sua função de instituição moderna e atuante que está na permanência de programas de pesquisas, estudos e debates acerca de questões importantes para a comunidade na área de abrangência da URCA.

Penso que, assim procedendo, o IPESC marca este momento presente, com um tento de largo alcance, no seu ofício de colaborar com os pesquisadores de história regional, assinalando muito bem este seu primeiro ano de atividades.

Prof. Renato de Casimiro, UFC
Consultor do IPESC



Acesse o arquivo completo em PDF
Nome do arquivo: Questao_religiosa.pdf
Tamanho: 603.45 KB

A TERRA DA MÃE DE DEUS Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros

O Padre Cícero foi o padrinho de milhares de sertanejos, "meu padrinho" para milhões de nordestinos. Antes de tudo ele foi o sertanejo que viveu os códigos de sua cultura, encarnou o protótipo, o modelo do padrinho protetor, reivindicando até a interferência divina para sê-lo. No sonho que relatamos, Cristo ordenando-lhe que protegesse seus filhos desamparados, nomeia-o padrinho daquela gente. Vivendo integralmente o papel cultural, recebeu dos afilhados o título honorífico, foi o "meu padrinho", o guia, o chefe, o líder de gerações de seguidores que, longe de diminuírem em número com a distância do tempo, aumentam, pela comparação da vida dele com a prática da vida moderna, desagregadora e desamparadora. As estatísticas das romarias de Juazeiro apontam o crescimento do número de adeptos, de afilhados do Padre Cícero. — Página 173.

Relacionando os exemplos cristãos com a vida rotineira do homem, vinculando os princípios de honradez, coragem, hospitalidade, trabalho, resistência ao sofrimento, respeito aos mais fracos, às próprias palavras do evangelho, à vida de Cristo e dos Santos, estendia-se com os matutos por horas infindas. Dava-lhes conselhos ensinando-lhes métodos mais atualizados de agricultura, orientando-os no uso da medicina popular sertaneja, admoestando-os, numa linguagem clara, para uma forma mais amigável de convivência. Só se afastava dos romeiros para os trabalhos do sacerdócio e a leitura. Em sua biblioteca constatamos o uso continuado do "Formulário e Guia Médico" de Chernoviz, o que indica a preocupação com o aprendizado de uma orientação médica que pudesse seguir, no atendimento àqueles milhares de analfabetos que o procuravam se queixando de todo tipo de doenças. — Página 174.

O acervo de conhecimentos do Padre Cícero entusiasmou o botânico alemão Philipp Von Lueztzelbug que, a serviço da Inspetoria Federal de Obras contra as Secas — do Ministério da Viação e Obras Públicas, passou no Juazeiro em 1921. De sua viagem publicou o livro "Estudo Botânico do Nordeste", publicação n.º 57, série I, daquele Ministério, em 1923. Na página 59 deste livro, se lê:

"Naturalmente, para mim, se tornou de capital importância conhecer e falar com o Padre Cícero e tive o prazer de, à minha chegada, ser recebido e ter animada palestra com o mesmo. Este velho, de real prestígio popular, deixou-me gratas recordações. Tratou-me com delicadeza e amabilidade. De fato, trata-se de um homem que dispõe de instrução e saber invulgares: aborda com igual facilidade a política e a história brasileira; tem conhecimentos profundos de história universal, ciências naturais, especialmente quanto à agricultura. Os institutos científicos deviam entrar em contato com aquele homem que dispõe de conhecimentos excepcionais com relação à Paleontologia, Geologia e História, adquiridos parte por observações e estudos pessoais, parte pelas indicações que colhe de seus inúmeros fiéis e romeiros, que das paragens mais longínquas trazem ao 'Padrinho' tudo aquilo que encontram de esquisito e extraordinário... Poderia o leitor objetar que pouca importância se deve dar aos achados dos romeiros, geralmente sem instrução. Contudo, devo notar que tive oportunidade de estudar a curiosa coleção do Padre Cícero, onde encontrei material preciosíssimo..." — P. 175.

O Padre Cícero acreditava tanto que Nossa Senhora das Dores enviara para Juazeiro os necessitados, que não se permitia deixar de atender quem o procurasse, fosse pobre, rico, criminoso, beato, louco ou portador de doença contagiosa. M. Diniz ouviu o padre fazer a seguinte pregação aos romeiros um dia, na hora da bênção em sua casa: "Vocês, que vêm de suas terras distantes, do sul de Alagoas e Pernambuco, dos Brejos da Paraíba, das praias do Rio Grande do Norte e deste Estado, ou dos longínquos sertões do Piauí, Maranhão e Bahia, sofrendo privações, a fome, a sede, o sol e as intempéries dos longos caminhos, tudo por amor a visitar Nossa Senhora das Dores e o Padre Velho do Juazeiro, fiquem certos de que a Mãe de Deus recompensará a todos. E quanto a mim, não acreditem no que propalam, dizendo que vou deixar este lugar. Não acreditem, porque o Juazeiro é uma cidade da Mãe de Deus, e ela foi quem me colocou aqui. E nem o Satanás, nem os homens de Satanás têm poder para me tirar desta cidade, a qual só deixarei quando completar a salvação de vocês todos." — Página 178.

Linha do Tempo de Padre Cicero


24.03.1844
Nascimento do Padre Cícero (24.03.1844 - 20.07.1934).
30.11.1870
Ordenação do Padre Cícero em Fortaleza (na Sé Catedral do Ceará).
1871
Professor de latim no Colégio Cratense, de José Marrocos, em Crato.
O Prof. Simeão Correia convidou o Padre Cícero para ele celebrar a Missa do Natal em Juazeiro.
1877
Seca no Ceará.
1878
Seca no Ceará.
1879
Seca no Ceará.
1884
Segundo o Padre Cícero, tiveram início os êxtases de Maria de Araújo.
01.03.1889
Primeira transformação da hóstia em sangue na boca da beata Maria de Araújo.
07.07.1889
Primeira romaria, vinda de Crato sob o comando do Mons. Francisco Rodrigues Monteiro.
19.08.1889
Maria de Araújo disse que Jesus lhe havia aparecido na capela de Nossa Senhora das Dores.
Padre Cícero deu a comunhão a Maria de Araújo, em cuja boca a hóstia se transformou em sangue.
21.08.1889
Na missa celebrada pelo Padre Cícero, Jesus teria dito a Maria de Araújo que faria de Juazeiro porta do céu "para os puros e os justos".
Mons. Monteiro declarou que Maria de Araújo era santa.
04.11.1889
O bispo do Ceará, Dom Joaquim José Vieira, pediu ao Padre Cícero explicações sobre os fatos de Maria de Araújo.
07.01.1890
O Padre Cícero respondeu ao bispo sobre os fenômenos verificados em Maria de Araújo.
27.04.1890
O Padre Sother teria dado crucifixo de bronze a Maria de Araújo para ela rezar, e o crucifixo sangrou. (Ver 27.09.1891.)
26.03.1891
O Médico Marcos Rodrigues Madeira fez exame da hóstia em sangue e na forma de coração na boca da beata Maria de Araújo.
29.04.1891
Em rede, a beata Maria de Araújo estava em sangue e com as feridas de Jesus no corpo.
15.05.1891
O juiz de direito de Barbalha, João Firmino de Holanda, veio ver uma transformação da hóstia.
19.07.1891
Comissão de inquérito (Padre Clycério da Costa Lobo e Padre Francisco Ferreira Antero) constituída por Dom Joaquim José Vieira para verificar os fatos em Juazeiro.
09.09.1891
Maria de Araújo e mais 19 testemunhas foram ouvidas pela Comissão.
10.09.1891
Na igreja. Padre Clycério convocou 23 testemunhas (padres, leigos) da comunhão reservada a Maria de Araujo. Três comunhões. Três transformações da hóstia em sangue.
10.09.1891
Na casa do Padre Cícero. A beata Maria de Araújo estava em rede, e o corpo sangrava.
11.09.1891
A hóstia transformou-se em sangue.
12.09.1891
A hóstia transformou-se em carne viva.
24.09.1891
O Padre Clycério deu a comunhão a Maria de Araujo. A hóstia sangrou.
Os médicos Ignácio de Sousa Dias e Marcos Rodrigues Madeira deram atestado do fato como sobrenatural.
27.09.1891
O Padre Quintino (de Crato) mostrou-se propenso a acreditar nos fenômenos como milagres. O Padre Sother igualmente. (Ver 27.04.1890.)
28.04.1891
Casa de Caridade de Crato.
Cinco mulheres testemunhas dizem que os fenômenos são milagres.
Duas hóstias apareceram entre os dedos da mão direita da beata para comunhão dos padres Clycério e Antero.
Minutos depois, mais duas hóstias, que continuaram sangrando nas mãos dos padres.
20.04.1892
O Padre Alexandrino (e o Padre Manoel Cândido, da segunda Comissão de Inquérito) deixou Maria de Araújo 16 minutos de boca aberta. Não houve transformação.
21.04.1892
A beata ficou 15 minutos de boca aberta. Não houve transformação.
22.04.1892
A beata ficou 15 minutos de boca aberta. Não houve transformação.
06.08.1892
Portaria de Dom Joaquim suspendeu de ordens o Padre Cícero. O Padre Alexandrino fez a comunicação.
25.03.1893
Carta Pastoral de Dom Joaquim obrigou os párocos a negar como milagres os fatos de Juazeiro.
07.1893
O Cardeal Mônaco, em Roma, recebeu a documentação remetida por Dom Joaquim.
03.07.1893
Recepção em Juazeiro ao Padre Antero, vindo de Roma.
10.11.1893
Portaria de Dom Joaquim proibiu qualquer função religiosa em Juazeiro.
14.11.1893
Carta anônima comunicou a Dom Joaquim a intenção que tinha José Marrocos de pedir ao Vaticano a vinda de comissão de inquérito.
Dom Joaquim passou a informação ao Cardeal Dom Girolamo Gotti, Internúncio em Petrópolis.
04.04.1894
A Congregação do Santo Ofício impôs penitência a Maria de Araúj; proibiu visitas a ela e qualquer publicação dos fenômenos; impôs silêncio acerca dos fenômenos e a incineração dos panos e das hóstias ensanguentados.
25.07.1894
Carta Pastoral de Dom Joaquim censurava o Padre Cícero de abusar da simplicidade dos católicos, declarava-o desobediente e impunha ao detentor dos panos e das hóstias que os devolvesse sob pena de excomunhão.
25.09.1894
O Padre Cícero mandou a beata Maria de Araújo para a Casa de Caridade de Barbalha.
25.12.1894
O Padre Cícero pediu ao Santo Ofício ser ouvido (ser interrogado por ele). Não foi atendido.
01.11.1895
Cinco homens tentaram matar de faca o Padre Cícero. Ação frustrada pelos romeiros.
13.04.1896
Portaria de Dom Joaquim proibiu o Padre Cícero de construir a igreja do Horto e de celebrar missa.
26.06.1896
O Padre Cícero telegrafou à Santa Sé pedindo a vinda de comissão a Juazeiro para investigar os fatos.
04.07.1896
Sem reposta ao telegrama, o Padre Cícero renovou o pedido. Foi censurado pela cobrança de resposta.
31.07.1897
Carta Pastoral de Dom Joaquim dizia que a beatas negaram o que haviam afirmado e que o Padre Antero se desdissera.
02.1898
O Padre Cícero embarcou em Recife a Roma.
25.02.1898
O Padre Cícero chegou a Roma.
23.04.1898
O Padre Cícero apresentou-se ao Santo Ofício.
17.08.1898
Saiu a decisão do Santo Ofício. Linguagem ambígua, interpretável pró ou contra o Padre Cícero.
Dom Joaquim interpretou a decisão contra o Padre Cícero.
12.10.1898
O Padre Cícero embarcou de volta para o Brasil.
13.11.1898
O Padre Cícero desembarcou em Fortaleza.
26.12.1898
Dom Joaquim escreveu a quarta Carta Pastoral. Mantinha-se contra os fatos de Juazeiro.
02.1899
O Padre Cícero foi morar em Crato.
23.04.1909
O Padre Cícero foi a Petrópolis falar com o Internúncio Alessandro Bovona.
18.07.1909
Primeira edição do periódico O Rebate, fundado para defesa política de Juazeiro.
26.08.1909
O Bispo Auxiliar (do Ceará) Dom Manoel Antônio de Oliveira veio ao Cariri. Em Crato, o orador oficial, Padre Antônio Tabosa Braga, abriu o discurso chamando o povo do Crato "nobre e altivo" e "imundo o povo do Juazeiro".
14.08.1910
José Joaquim Teles Marrocos faleceu.
18.02.1911
Crato e Juazeiro fizeram acordo de paz política para independência de Juazeiro.
22.07.1911
A Lei n.°1.028 (estadual) deu autonomia política a Juazeiro.
04.10.1911
O Padre Cícero foi empossado prefeito.
15.12.1913
Dr. Floro proclamou-se governador paralelo.
O Cap. Ladislau, das forças estaduais vindas de Fortaleza contra Juazeiro, avisou a Dr. Floro estar saindo de Crato para o ataque com 600 homens.
19.12.1913
A força estadual foi reforçada com mais 500 homens sob o comando do Cel. do Exército Alípio Lopes.
20.12.1913
As tropas vindas de Crato atacaram Juazeiro. Foram barradas pelo valado. Os soldados começaram a debandar.
17.01.1914
Maria de Araújo faleceu.
22.01.1914
O Cap. Ladislau, ressacado, retirou definitivamente as tropas: reconheceu estar vencido.
23.01.1914
Os combatentes de Juazeiro venceram Crato. Saque.
27.01.1914
Os combatentes de Juazeiro tomaram Barbalha. Saque.
Marchavam sobre Fortaleza para depor o governador, Franco Rabelo.
14.02.1914
Tomada de Iguatu, também saqueada (depois de Lavras, Jucás).
25.02.1914
Tomada de Senador Pompeu. Saque.
27.02.1914
Tomada de Quixeramobim. Saque.
01.03.1914
Tomada de Quixadá. Saque.
06.03.1914
Tomada de Baturité. Saque.
15.03.1914
Fortaleza estava vencida.
24.04.1914
O Padre Cícero foi nomeado prefeito pelo governador Setembrino de Carvalho.
13.05.1914
O Padre Cícero foi eleito primeiro vice-governador.
Dr. Floro foi confirmado presidente da Assembleia Legislativa.
04.08.1914
Joaquina Vicência Romana (Quinô), mãe do Padre Cícero, faleceu.
20.10.1914
Bento XV autorizou a fundação da Diocese de Crato.
12.07.1916
O Santo Ofício excomungou o Padre Cícero.
O decreto da excomunhão não chegou ao conhecimento do Padre Cícero.
23.12.1916
Dom Quintino visitou Juazeiro (primeira vez).
20.04.1920
Dr. Floro leu a íntegra da excomunhão que fora envida ao Padre Cícero por meio de Dom Quintino. Tomou providências para que não fosse executada por motivo da abalada saúde do Padre Cícero.
23.02.1921
O Santo Ofício determinou a Dom Quintino (bispo de Crato) absolver de censuras o Padre Cícero e admiti-lo a confissão e a comunhão como leigo.
04.06.1921
O Padre Cícero recebeu o decreto de Dom Quintino proibindo-o de exercer funções sacerdotais.
O Padre Cícero acabava de celebrar a missa na igreja de Nossa Senhora das Dores. Foi a última missa que ele celebrou.
12.1924
O Padre Cícero escreveu ao Padre Rota manifestando o desejo de um colégio salesiano em Juazeiro.
09.01.1926
O Batalhão Patriótico (1.000 homens) formado por Dr. Floro para combater a Coluna Prestes postou-se à frente da casa do Padre Cícero e ao comprido da rua.
27.01.1926
O Santo Ofício escreveu a Dom Quintino informando que receberia qualquer recurso do Padre Cícero.
07.03.1926
Lampião deixou Juazeiro, aonde veio chamado por Dr. Floro para combater a Coluna Prestes.
08.03.1926
Dr. Floro faleceu no Rio de Janeiro. Joana Tertuliana de Jesus (Mocinha) fez-se de Dr. Floro.
07.11.1926
O trem chegou a Juazeiro pela primeira vez.
22.10.1930
O Padre Cícero registrou no Cartório Machado a violação do túmulo de Maria de Araújo procedida por ordem do Mons. José Alves de Lima sem ordem judicial.
17.01.1934
O Padre Cícero doou à Diocese de Crato bens avaliados em 340 contos de réis.
20.07.1934
O Padre Cícero faleceu.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

As argumentações dos intelectuais anticristãos

As argumentações de Marco Aurélio (121-180), Galeno (129-200), Luciano, Pelegrino Proteo e, especialmente, Celso (que escreveram suas obras na segunda metade do século segundo) podem-se condensar assim:
«A 'salvação' da insignificatividade da vida, da desordem dos acontecimentos, do aniquilamento da morte, da dor, só pode ser encontrada numa 'sabedoria filosófica' por parte de uma elite de raros intelectuais. Trata-se de uma loucura o fato de os cristãos colocarem esta 'salvação' na 'fé' num homem crucificado (como os escravos) na Palestina (uma província marginal) e declarado ressuscitado.
«O fato de os cristãos crerem na mensagem do crucificado, que se dirige preferencialmente aos marginalizados e pobres (à 'poeira humana') e que pregue a fraternidade universal (numa sociedade bem escalonada em pirâmide e considerada como 'ordem natural') é outra loucura intolerável, que incomoda, que revira tudo. É preciso eliminar os Cristãos como transgressores da civilização humana».

A crítica dos intelectuais anticristãos volta-se contra a própria idéia de "revelação do alto", não baseada numa "sabedoria filosófica"; contra as Escrituras cristãs, que têm contradições históricas, textuais, lógicas; contra os dogmas "irracionais"; contra o fato do LOGOS de Deus fazer-se carne (Evangelho de João) e submeter-se à morte dos escravos; contra a moral cristã (fidelidade no matrimônio, honestidade, respeito pelos outros, ajuda recíproca), que pode ser alcançada por um pequeno grupo de filósofos, mas não certamente pela massa intelectualmente pobre.

Toda a doutrina cristã, para esses intelectuais, é loucura, como é loucura a pretensão da ressurreição (ou seja, da prevalência da vida sobre a morte), como é loucura a preferência de Deus pelos humildes e a fraternidade universal. É tudo irracional.

O filósofo grego Celso, em seu Discurso sobre a verdade, escreve: «Recolhendo gente ignorante, que pertence à mais vil população, os cristãos desprezam as honras e a púrpura, e chegam até mesmo a chamar-se indistintamente de irmãos e irmãs… O objeto de sua veneração é um homem punido com o último dos suplícios e, do lenho funesto da cruz, eles fazem um altar, como convém a depravados e criminosos».

As primeiras reações dos Cristãos


Por decênios, os cristãos permaneceram calados. Difundem-se com a força silenciosa da proibição. Opõem amor e martírio às acusações mais infamantes. É no segundo século que seus primeiros apologistas (Justino, Atenágoras, Taciano) negam, com a evidência dos fatos, as acusações mais infamantes, e procuram exprimir a própria fé (nascida em terra semítica e confiada a "narrações") em termos culturalmente aceitáveis por um mundo embebido de filosofia greco-romana. Os "tijolos" bem alinhados da mensagem de Jesus Cristo começam a ser organizados segundo uma estrutura arquitetônica que possa ser valorizada pelos greco-romanos. Serão Tertuliano, no Ocidente, e Orígenes, no Oriente (terceiro século), a darem uma forma sistemática e imponente a toda a "sabedoria cristã". Com os "tijolos" da mensagem de Jesus Cristo tentar-se-á delinear a harmonia da basílica romana, como depois, com o passar dos séculos, tentar-se-á delinear a ousadia da basílica gótica, a sólida pacatez da catedral românica, o fasto da igreja barroca…


A grave crise do terceiro século (200-300)

O século terceiro vê Roma em gravíssima crise. As relações entre Cristianismo e império romano transformam-se, embora nem todos o percebam. A grande crise é assim descrita pelo historiador grego Herodiano: «Jamais houve, nos duzentos anos passados, um tão freqüente suceder-se de soberanos, nem tantas guerras civis e contra os povos limítrofes, nem tantos movimentos de povos. Houve uma quantidade incalculável de assaltos a cidades no interior do Império e em muitos países bárbaros, de terremotos e pestilências, de reis e usurpadores. Alguns deles exerceram o comando longamente, outros mantiveram o poder por brevíssimo tempo. Algum deles, proclamado imperador e glorificado, permaneceu um só dia e logo desapareceu».

O Império Romano estendera-se progressivamente com a conquista de novas províncias. A conquista continuada permitira a exploração de sempre novas vastíssimas terras (o Egito era o celeiro de Roma, a Espanha e as Gálias, a sua vinha e o seu olival). Roma apossara-se de sempre novas minas (a Dácia tinha sido conquistada pelas suas minas de ouro). As guerras de conquista tinham providenciado multidões infinitas de escravos (prisioneiros de guerra), mão-de-obra gratuita.

Em meados do século terceiro (por volta de 250) percebeu-se que a festa acabara. A Leste, formara-se o poderoso império Sassânida, que fez duríssimos ataques aos Romanos. Em 260 foram capturados o imperador Valeriano e todo o seu exército de 70 mil homens, e devastadas as províncias do Leste. A peste acabou com as legiões supérstites e espalhou-se por todo o Império. Ao Norte formara-se um outro aglomerado de povos fortes: os Godos. Espalharam-se pela Mésia e pela Dácia. O Imperador Décio e o seu exército tinham sido massacrados em 251. Os Godos desceram devastando do Norte até Esparta, Atenas, Ravena. Eram terríveis os amontoados de destroços que deixavam. A maior parte das pessoas cultas, que não puderam ser substituídas, perderam a vida ou tornaram-se escravas. A vida regrediu ao estado primitivo e selvagem. A agricultura e o comércio foram aniquilados.

Nesse tempo de grave incerteza cai a segurança garantida pelo Estado. Agora são os gentios (=pagãos) que se tornam "irracionais", a confiar não mais na ordem imperial mas na proteção das divindades mais misteriosas e estranhas. Surge no Quirinal, em Roma, um templo à deusa egípcia Isis, o imperador Heliogábalo impõe a adoração do deu Sol, o povo recorre a ritos mágicos para manter a peste distante. Entretanto, mesmo no século terceiro dão-se anos de terríveis perseguições contra os cristãos. Não mais por causa da sua "irracionalidade" (num mar de gente que se entrega a ritos mágicos, o cristianismo é agora o único sistema racional), mas em nome da renascida limpeza étnica. Muitos imperadores, mesmo sendo bárbaros de nascimento, vêem no retorno à unidade centralizada a única via de salvação. E decretam a extinção dos cristãos, sempre mais numerosos, para lançar fora da etnia romana esse "corpo estranho", que se apresenta sempre mais como uma nova etnia, pronta a substituir aquela que já declina do império fundado nas armas, na rapina, na violência.


Setímio Severo, Maximino, Décio e Galo

Com Setímio Severo (193-211), fundador da dinastia siríaca, parece anunciar-se ao cristianismo uma fase de desenvolvimento não perturbado. Muitos cristãos ocupam posições influentes na corte. Só no décimo ano de seu reinado (202), o imperador muda radicalmente de atitude.

Em 202 surge um edito de Setímio Severo, que comina graves penas à passagem ao judaísmo e à religião cristã. A repentina mudança do imperador pode ser compreendida apenas pensando que ele percebera que os cristão estavam se unindo sempre mais fortemente numa sociedade religiosa universal e organizada, dotada de uma íntima forte capacidade de oposição que a ele, por considerações de política estatal, parece suspeita. As devastações mais vistosas foram sofridas pela célebre escola cristã de Alexandria e pelas comunidades cristãs da África.
Maximino Trace (235-238) teve uma reação violenta e brutal contra o que tinham sido amigos do seu predecessor, Alexandre Severo, tolerante com os cristãos. A igreja de Roma foi devastada com a deportação às minas da Sardenha dos dois chefes da comunidade cristã, o bispo Ponciano e o presbítero Hipólito.

A atitude para com os Cristãos não fora alterada entre a gente simples; demonstra-o a verdadeira caça aos cristãos desencadeada na Capadócia quando se acreditava ver neles os culpados de um terremoto. A revolta popular diz-nos o quanto os cristãos ainda fossem considerados "estranhos e maléficos" pelo povo. (Cf. K. Baus, Le origini, p. 282-287).

Sob o imperador Décio (249-251) desencadeia a primeira perseguição sistemática contra a Igreja, com a intenção de desenraiza-la para sempre. Décio (sucessor de Filipe o Árabe, muito favorável aos cristão, se não ele mesmo cristão), é um senador originário da Panônia, e muito apegado às tradições romanas. Sentindo profundamente a desagregação política e econômica do império, acreditou que podia restaurar a sua unidade recolhendo todas as energias ao redor dos protetores do Estado. Todos os habitantes são obrigados a sacrificar aos deuses e recebem, depois disso, um certificado.
As comunidades cristãs estão abaladas pela tempestade. Quem recusa-se ao ato de submissão é preso, torturado, justiçado: como o bispo Fabiano em Roma e, com ele, muitos sacerdotes e leigos. Em Alexandria houve uma perseguição acompanhada de saques. Na Ásia, os mártires foram numerosos; entre eles, os bispos de Pérgamo, Antioquia, Jerusalém. O grande estudioso Orígenes foi submetido a uma tortura desumana, e sobreviveu quatro anos aos suplícios, reduzido a uma larva humana.

Nem todos os Cristãos suportam a perseguição. Muitos aceitam sacrificar. Outros, mediante suborno, obtêm escondidamente os famosos certificados. Entre eles, segundo a carta 67 de Cipriano, estão pelo menos dois bispos espanhóis. A perseguição, que parece golpear até à morte a Igreja, termina com a morte de Décio em batalha contra os Godos na planície de Dobrug (Romênia). (Cf. M. Clèvont, I Cristiani e il potere. P. 179s).

Os setes anos seguintes (250-257) são de tranqüilidade para a Igreja, perturbada apenas em Roma por uma breve onda de perseguição quando o imperador Trebônio Galo (251-253) manda prender o chefe da comunidade cristã Cornélio, mandando-o em exílio a Centum Cellae (Civitavecchia). Sua conduta foi devida, provavelmente, à condescendência aos humores do povo, que atribuía aos cristãos a culpa pela peste que assolava o império. O cristianismo continuava a ser visto como "superstição" estranha e maléfica! (Cf. K. Baus, Le origini, p. 292).

Valeriano e as finanças do império

No quarto ano do reino de Valeriano (257) tem-se um improvisa, dura e cruenta perseguição dos cristãos. Não se tratou contudo de assunto religioso, mas econômico. Diante da precária situação do império, o conselheiro imperial (depois usurpador) Macriano induziu Valeriano a tentar tapar o rombo seqüestrando os bens dos cristãos ricos. Houve mártires ilustres (do bispo Cipriano ao papa Sisto II, ao diácono Loureço). Foi, porém, apenas um furto encoberto por motivos ideológicos, que terminou com o trágico fim de Valeriano. Em 259, ele caiu prisioneiro dos persas com todo o seu exército, foi obrigado à vida de escravo e morreu com tal.
Os quarenta anos de paz que se seguiram, favoreceram o desenvolvimento interno e externo da Igreja. Muitos cristãos acederam a altos cargos do Estado e demonstraram-se homens capazes e honestos.

O desastre financeiro cai nos braços de Diocleciano

Em 271 o imperador Aureliano ordenou aos soldados e cidadãos romanos que abandonassem aos Godos a vasta província da Dácia e suas minas de ouro: a defesa daquelas terras já tinha custado muito sangue.

Como não existiam mais províncias a conquistar e explorar, todas as tenções voltaram-se para o cidadão comum. Sobre eles abateram-se taxas, corvéias (= manutenção de aquedutos, canais, esgotos, estradas, edifícios públicos…) sempre mais onerosos. Já não se sabia, literalmente, se o trabalho realizado era para sobreviver ou para pagar as taxas.

Em 284, depois de uma brilhante carreira militar, Diocleciano, de origem dálmata, foi aclamado imperador. Desde então as taxas seriam pagas per capita e per jugero, ou seja, um tanto por cada pessoa e por cada pedaço de terra cultivável.
A coleta das taxas foi confiada a uma atilada e imensa burocracia, que tornava impossível fugir ao fisco, punia de modo desumano quem conseguia fazê-lo e custava muitíssimo ao estado.
As taxas eram tão pesadas que tiravam a vontade de trabalhar. A solução foi proibir que se abandonasse o lugar de trabalho, o pedaço de terra que se cultivava, a oficina, o uniforme militar.
«Teve início, dessa forma - escreve F. Oertel, professor de história antiga na Universidade de Bonn - a feroz tentativa do Estado de espremer a população até à última gota… Sob Diocleciano é realizado um socialismo integral de estado: terrorismo de funcionários, fortíssima limitação da ação individual, progressiva interferência estatal, pesadas taxações».