O Malleus Maleficarum
(traduzido para português como Martelo das Feiticeiras ou Martelo
das Bruxas) é um livro escrito em 1484 e publicado em 1486 (ou 1487), por
dois monges alemães dominicanos, Heinrich Kramer e James Sprenger, que se
tornou uma espécie de "manual contra a bruxaria". O livro foi
amplamente utilizado pelos inquisidores por aproximadamente duzentos e
cinqüenta anos, até o fim da Santa
Inquisição, e servia para identificar bruxas e os malefícios causados por
elas, além dos procedimentos legais para acusá-las e condená-las.
O
Malleus Maleficarum traz inúmeras e exageradas descrições e, até certo ponto,
apelativas e incoerentes. O livro divide-se em três partes distintas, sendo que
cada parte subdivide-se em capítulos chamados de Questões. A primeira
parte, que contém dezoito questões, ensina a reconhecer bruxas em seus
múltiplos disfarces e atitudes. A segunda parte traz apenas duas ques- tões,
mas a primeira está subdividida em dezesseis capítulos e a segunda em oito
capítulos. Esta segunda parte expõe os tipos de malefícios, classificando-os e
explicando-os detalhadamente, e os métodos para desfazê-los. A terceira e
última parte, que contém uma introdução geral e trinta e cinco questões
subdivididas, condiciona as formalidades para agir "legalmente"
contra as bruxas, demonstrando como inquiri-las e condená-las, tanto nos
tribunais civis como eclesiásticos.
As teses centrais do Malleus
Maleficarum fundamentaram-se na idéia de que o demônio, sob a permissão de
Deus, procura fazer o máximo de mal aos homens para apropriar-se de suas almas.
Este mal é feito prioritariamente através do corpo, único canal em que o
demônio pode predominar. A influência demo- níaca é feita através do controle
da sexualidade, e por ela, o demônio se apropria primeiramente do corpo e
depois da alma do homem. Segundo o livro, as mulheres são o maior canal de ação
demoníaca.
Ainda, a primeira e mais
importante característica descrita no livro, responsável por todo o poder das
feiticeiras, é copular com o demônio. Portanto, Satã é o "senhor do
prazer". Dessa forma, uma vez obtida a relação com o demônio, as
feiticeiras são capazes de desencadear todos os males, especialmente impotência
masculina, impossibilidade de livrar-se de paixões desorde- nadas, oferendas de
crianças à Satã, abortos, destruição das colheitas, doenças nos animais, entre
outros. Porém, no próprio livro é citado que o coito com o demônio não seria
exatamente carnal, já que estas criaturas eram espíritos, mas ocorria através
de rituais orgíacos.
O surgimento do Malleus Maleficarum
No início do século IX,
havia a crença popular sobre existência de bruxos que, através de artifícios
sobrenaturais, eram capazes de provocar discórdia, doenças e morte. Por sua
vez, a Igreja não aceitava a existência de bruxos e ainda, baseado no Conselho
eclesiástico de São Patrício (St. Patrick), afirmava que "um cristão
que acreditasse em vampiros, era o mesmo que declarar-se bruxo, confesso ao
demônio" e "pessoas com crenças não poderiam ser aceitas
pela Igreja a menos que revogue com suas palavras o crime que cometeu".
Na segunda metade do
século X já havia penalidades severas para quem fizesse uso de artes mágicas.
No século XIV (1326) a Igreja autoriza a Inquisição a investigar os casos de
bruxaria. Pouco mais de cem anos depois, em 1430, teólogos cristãos começam a
escrever livros que "provam" a existência de bruxos. O livro Formicarius,
escrito por Thomas de Brabant, em 1480, aborda a relação entre o homem e a
bruxaria.
Em uma sociedade na qual
a religiosidade, política, sexualidade e artes estavam interligadas e sob o
domínio da Igreja, transgredir as normas de conduta em apenas um desses campos,
acarretaria, por conseqüência, numa transgressão generalizada e direta sobre o
poder do clero. Dessa forma, sob o papado de Inocêncio VIII, o Malleus
Maleficarum nasceu da necessidade que a Igreja Católica tinha de organizar e
legitimar suas práticas, principalmente quando relacionadas à Santa Inquisição,
que já atuava desde o final do século XII. Até aquele momento, não havia uma
referência oficial que abordasse a questão da bruxaria. Fazia-se necessário um
documento escrito, aprovado pelo corpo eclesiástico, que tivesse valor legal e
determinasse com maior precisão possível, as práticas de feitiçaria e suas
respectivas punições.
Heinrich Kramer e James
Sprenger, através de uma bula de Inocêncio VIII, foram nomeados inquisidores
para que investigassem as práticas de bruxaria nas províncias do norte da
Alemanha e incumbidos de produzir a obra que institucionaliza-se e legitima-se
a ação da Igreja. Por aproximadamente dois anos, encarregaram-se da produção do
espesso trabalho de mais de quatrocentas páginas. Por fim, o Formicarius foi
acoplado e passou a fazer parte do tratado eclesiástico intitulado Malleus
Maleficarum. A imprensa, recém surgida, facilitou a divulgação da campanha
movida pela Igreja contra as feiticeiras.
Mulheres & Feiticeiras
Tradicionalmente, nas
culturas pré-cristãs, a mulher era objeto de adoração e respeito. Era a fonte
doadora da vida e símbolo da fertilidade. Porém, mesmo sob a alegação formal de
combater a heresia em todas as suas variações, as descrições contidas no
Malleus Maleficarum, fundamentadas em conceitos de uma civilização patriarcal,
contribuíram para construir uma idéia fantasiosa e infamante sobre as mulheres.
Esta idéia podia ser
legitimada através do preceito que Eva surgiu de uma costela torta de Adão.
Logo, ocorreu a associação que, conseqüentemente, todas as mulheres não podiam
ser retas em sua conduta. Ainda, o pecado original ocorreu através do ato
sexual (na metáfora de Adão e Eva comendo maçã) e, assim, a sexualidade era o
ponto mais vulnerável do ser humano. Portanto, segundo o livro, "mas a
razão natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o que se
evidencia pelas suas muitas abominações carnais".
Desse
modo, qualquer mulher que se dispusesse a tratar pequenas enfermidades ou
ferimentos com preparados do- mésticos à base de ervas, morasse sozinha e
tivesse um animal de estimação (um gato, por exemplo), tivesse com- portamento
pernicioso, entre outras alegações superficiais, podia ser acusada de bruxaria.
A tortura,
como é sugerida no próprio Malleus Malefi- carum, era o método utilizado para
extrair as confissões das supostas bruxas. Aparelhos como A dama de ferro
e a Cadeira das Bruxas eram amplamente utilizados. Além de torturas
menos sofisticadas, como aquecimento dos pés ou introdução de ferros sob as
unhas. Deste modo, a ré passava por tantos suplícios que acabava por admitir as
sentenças elaboradas pelo inquisidor.
Ainda, as lendas em torno
das supostas bruxas propa- gavam-se entre o povo. Através da ação demoníaca,
uma mulher podia ser capaz de se transformar em animais, voar e manipular a
vontade, confundir o pensamento e a atitude de outras pessoas. Provocar ereção
masculina ou a impotência sexual; além de inibir ou aumentar a libido de suas
vítimas. As bruxas, em seus rituais, dançavam nuas nos campos e se alimentavam
de fetos e cadáveres.
Atualmente, aos olhos da
ciência moderna, principalmente da psicanálise, diversos "sintomas e
indícios" de possessão demoníaca descritos no Malleus Maleficarum são
apenas disfunções mentais, como histeria e alucinações. O ocorrido em Salem,
Nova Inglaterra, no fim do século XVII, é um bom exemplo de histeria coletiva.
Ainda sob o olhar dos historiadores modernos, os motivos que levaram à produção
do Malleus Maleficarum não são mais que artimanhas políticas com pouca ou
nenhuma argumentação religiosa.
De qualquer forma, o
Malleus Maleficarum é um produto religioso e político dos mais significativos
da Idade Média. Não é possível dissociá-lo do contexto histórico da Santa
Inquisição, da Igreja Católica medieval, tampouco dos principais acontecimentos
daquela época, como a peste negra, a queda do sistema feudal, a invenção da
imprensa e o início da Renascença. Isto porque, de forma direta ou até mesmo
contraditória, um acontecimento impacta sobre outro. Assim, o Malleus
Maleficarum é mais que um "código penal eclesiástico" utilizado na
Idade Média; é um registro fiel do que foi parte do pensamento da Igreja
Católica medieval, com uma imensa oposição à figura da mulher e um desejo
ensandecido de manter a autoridade política, econômica e religiosa e, desse
modo, de todo um contexto deste capítulo da história da humanidade.
Por
Spectrum
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